terça-feira, 29 de março de 2022

A crônica

 Características da crônica

  • Texto curto;
  • Temas do cotidiano;
  • Percepção pessoal do assunto.

Estas são as três principais características da crônica, mas não custa repetir que esta percepção pessoal, normalmente, se baseia em uma ideia simples.

E para podermos explicar isso melhor, primeiro, precisamos entender que apesar de seguir estas regras (ou características), existem algumas variações. E são estas variações que trazem à tona a ideia central de cada crônica. Então, vamos destrinchar o assunto.

Como fazer uma crônica: passo a passo

A crônica, assim como todo texto, possui uma sequência lógica a ser seguida. Esse formato permite que ela seja legível. Portanto, a estrutura de uma crônica é formada por apresentação, desenvolvimento e conclusão.

Porém, como os objetivos de cada crônica são variáveis, estes elementos também têm pequenas variações. Para explicar isso, vejamos alguns tipos de crônica:

  • Crônica narrativa: tem a intenção de narrar um evento cotidiano, apresentando o ponto de vista do autor sobre os fatos. Portanto, inicia apresentando a situação, desenvolve os acontecimentos e fecha com uma opinião do cronista.
  • Crônica argumentativa: quer ser a favor ou contra um determinado tema ou, pelo menos, fazer pensar sobre ele. Assim, começa apresentando a discussão, desenvolve algumas possíveis interpretações e termina com a opinião do escritor.
  • Crônica literária: o maior ícone deste estilo é Clarice Lispector, mas Luis Fernando Veríssimo também utiliza esta técnica, que consiste em contar uma história do cotidiano para demonstrar um ponto de vista através dela.
  • Crônica humorística: esta é uma das mais rebeldes da turma, porque José Simão e Millôr Fernandes já provaram que a estrutura pode ser quebrada. Quer uma dica? É preciso expor muito bem uma situação ou contexto para ter graça.

Esses não são os únicos estilos de crônica, mas são suficientes para perceber uma coisa que todos têm em comum: o ponto de vista do autor.

Ou seja, o humorista quer fazer rir e, para isso, escreve de forma diferente de quem argumenta a favor de uma ideia, por exemplo. Porém, ambos escrevem suas crônicas a partir de um ponto de vista. É por isso que o primeiro passo para escrever uma crônica é definir seu ponto de vista.

Passando sua personalidade para o papel

Crônica

Exemplos de crônicas

Confira 3 exemplos de crônicas, de alguns dos melhores cronistas do Brasil.

1. COMPLEXO DE VIRA-LATAS

“Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: “O Brasil não vai nem se classificar!”. E, aqui, eu pergunto:

— Não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?

Eis a verdade, amigos: — desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer: “extraiu” de nós o título como se fosse um dente.

E hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: — é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: — o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: — se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.

Mas vejamos: — o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”. Mas eis a verdade:

— eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: — sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado do Flamengo. Pois bem: — não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.

A pura, a santa verdade é a seguinte: — qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma:

— temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “complexo de vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do leitor: — “O que vem a ser isso?” Eu explico.

Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: — e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: — porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.

Eu vos digo: — o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo.

O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota.

Insisto: — para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão. “ 

Nelson Rodrigues, Texto extraído dos livros:“As cem melhores crônicas brasileiras”, editora Objetiva, Rio de Janeiro (RJ), p 118/119.

“À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol”, seleção de notas de Ruy Castro – Companhia das Letras – 1993.

2. PNEU FURADO

“O carro estava encostado no meio-fio, com um pneu furado. De pé ao lado do carro, olhando desconsoladamente para o pneu, uma moça muito bonitinha.
Tão bonitinha que atrás parou outro carro e dele desceu um homem dizendo
“Pode deixar”. Ele trocaria o pneu.
– Você tem macaco? – perguntou o homem.
– Não – respondeu a moça.
– Tudo bem, eu tenho – disse o homem – Você tem estepe?
– Não – disse a moça.
– Vamos usar o meu – disse o homem.
E pôs-se a trabalhar, trocando o pneu, sob o olhar da moça.
Terminou no momento em que chegava o ônibus que a moça estava esperando. Ele ficou ali, suando, de boca aberta, vendo o ônibus se afastar.
Dali a pouco chegou o dono do carro.
– Puxa, você trocou o pneu pra mim. Muito obrigado.
– É. Eu… Eu não posso ver pneu furado. Tenho que trocar.
– Coisa estranha.
– É uma compulsão. Sei lá. 

Luís Fernando Veríssimo. Livro: Pai não entende nada. L&PM, 1991 “

3. O MELHOR AMIGO

A mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da rua, meio ressabiado, arriscou um passo para dentro e mediu cautelosamente à distância. Como a mãe não se voltasse para vê-lo, deu uma corridinha na direção de seu quarto.
– Meu filho? – gritou ela.
– O que é? – respondeu, com ar mais natural que lhe foi possível.
– Que é que está carregando aí?
Como podia ter visto alguma coisa, se nem levantara a cabeça? Sentindo-se perdido, tentou ganhar tempo:
– Eu? Nada…
– Está sim. Você entrou carregando uma coisa.
Pronto: estava descoberto. Não adiantava negar, o jeito era procurar comovê-la. Veio caminhando desconsolado até a sala, mostrou à mãe o que estava carregando:
– Olha aí, mamãe: é um filhote…
Seus olhos súplices aguardavam a decisão.
– Um filhote? Onde é que você arranjou isso?
– Achei na rua. Tão bonitinho, não é, mamãe?
Sabia que não adiantava: ela já chamava o filhote de ISSO. Insistiu ainda:
– Deve estar com fome, olha a carinha que ele faz.
– Trate de levar embora esse cachorro agora mesmo!
– Ah! Mamãe… – já compondo cara de choro.
– Tem dez minutos para botar esse bicho na rua. Já disse que não quero animais aqui em casa. Tanta coisa para cuidar, Deus me livre de ainda inventar uma amolação dessas.
O menino tentou enxugar uma lágrima, não havia lágrima. Voltou para o quarto emburrado: a gente também não tem nenhum direito nessa casa – pensava. Um dia ainda faço um estrago louco. Meu único amigo, enxotado dessa maneira!
– Que diabo também, nessa casa tudo é proibido! – gritou lá do quarto, e ficou esperando a reação da mãe.
– Dez minutos! – repetiu ela, com firmeza.
– Todo mundo tem cachorro, só eu que não tenho.
– Você não é todo mundo.
– Também, de hoje em diante eu não estudo mais, não vou mais ao colégio, não faço mais nada.
– Veremos – limitou-se a mãe, de novo distraída com a costura.
– A senhora é ruim mesmo, não tem coração.
– Sua alma, sua palma.
Conhecia bem a mãe, sabia que não havia apelo: tinha dez minutos para brincar, com seu novo amigo, e depois… Ao fim de dez minutos, a voz da mãe, inexorável:
– Vamos, chega! Leva esse cachorro embora.
– Ah, mamãe deixa! – choramingou ainda.
– Meu melhor amigo, não tenho mais ninguém nessa vida…
– E eu? Que bobagem é essa, você não tem a sua mãe?
– Mãe e cachorro não é a mesma coisa.
– Deixa de conversa: obedece a sua mãe.
Ele saiu, e seus olhos prometiam vingança. A mãe chegou a se preocupar: meninos nessa idade, uma injustiça praticada e eles perdem a cabeça, um recalque, complexos, essa coisa toda…
Meia hora depois, o menino voltava da rua, radiante:
– Pronto, mamãe!
E lhe exibia uma nota de vinte e uma de dez: havia vendido seu melhor amigo por trinta dinheiros.
– Eu devia ter pedido cinqüenta, tenho certeza de que ele dava – murmurou pensativo.
 
Fernando Sabino – Livro : “A Vitória da Infância” -Editora Ática



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